02 abril 2010

A insónia

O calor dos lençóis aconchega mas não te é suficiente. Por mais que tentes o sono não entra. A cabeça está demasiado cheia, demasiado ocupada a processar os demónios que por lá param: os gestos passados, os erros antigos, os falhanços sucessivos, a saudade, a tristeza, as poucas alegrias... Pequenas rodas dentadas que moem e remoem até que tudo mais não seja que um simples nada.
Sentas-te na beira da cama, expectante que o apoio do chão te conforte. Os pés descalços acolhem o frio que sobe pernas acima, que se entranha no, antes quente, pijama. Nada te corre bem, tudo o que teu é nada contra a tua maré, as pequenas ondas que ainda tens de vontade e que, a bem ver, geralmente não chegam a muito longe.
Levantas-te então, esperando que os passos que dás te afastem das sombras que te apoquentam. Bebes um e dois copos de água à espera de matar a secura que sentes dentro de ti. Limpas a boca com a manga do pijama e voltas para a cama. Voltas e não voltas. Os passos levam-te lá mas isso não quer dizer que tenhas sido tu a percorrer os espaços de tua casa. Chegas então ao ainda quente leito. Que deleite deveria ser. Não é. Os demónios ainda gritam, ainda arranham as paredes da tua mente. Voltas a cabeça para o despertador e ligas o rádio, na senda de uma melodia que os adormeça ou que os acalme e te deixe a ti dormir. Nada. Culpas os ciclos de sono, desregulados pela vida que tens tido. Culpas tudo, a bem ver. Mas a culpa é senão deles, malfadados demónios. A culpa é senão tua por os alimentares.
E assim ficas a olhar o tecto, que de interessante não tem muito, à espera que chegue. O sono ou a morte, o que primeiro vier. Fechas os olhos, inspiras até os pulmões doerem e deixas-te estar assim por um momento, como uma bomba prestes a rebentar. A rebentar de dor, que no fundo é só e apenas o que trazes dentro. Expiras com quanta força carregas na esperança que os demónios se expurguem, que se esconjurem, ou que pelo menos, e só por hoje, se calem.
E esperas... até a manhã chegar.

3 comentários:

Salomé Gonçalves disse...

Devo ter tido duas na minha vida toda...
O que faltou foi um shot para fazer pesar os olhos ;)

L. disse...

"...à espera que chegue. O sono ou a morte, o que primeiro vier."

Porra, que irritas de tanta eloquência.

Rita Graça disse...

Eu também culpo os ciclos desregulados da vida que tens levado! (quem me dera uma vida assim...)

Mas a casa dos pais também é um local fértil e alimenta facilmente demónios do espírito.

Assim sendo há dois passos para a recuperação:
1. Respiras fundo e pensas "estou quase a sair daqui"
2. Dás tempo ao tempo. Grande parte das crises têm solução (não preciso de te dizer isto, tu é que és o psicólogo, sabes melhor que eu).

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